Eu não sei se é mal de
brasileiro, mas a gente sempre se apega a um fator diferenciador classista para
compensar a exigência de um esforço peculiar e, assim, chegar na referência de
melhor remuneração. Essas diferenças de tratamentos, aparentemente, servem para
igualar os desiguais ou para retribuir especificidades de cada profissão, mas,
na verdade, ocasiona um sistema paternalista de retribuição, e não do efetivo
resultado no trabalho.
No caso de um gari ou
empregada doméstica, que recebem um salário mínimo, é necessário distribuição
de renda. No caso de um deputado federal, que precisa representar o povo do seu
estado-membro em Brasília, deve-se ter avião disponível. No que diz respeito à Segurança Pública,
tem-se aposentadoria integral, menor tempo de contribuição, ponto eletrônico
facultativo – afinal, corre-se risco de morte e a profissão é desgastante – e,
o mais especial, adentrar em lugares de forma gratuita.
A “carteirada” é um tema
polêmico que protagoniza debates desde a Academia de Polícia; isso quando não é
vista como benesse do cargo na época em que ainda é concurseiro, vislumbrando muitas
vezes a regalia que terá no setor público (estabilidade, autoridade, etc), e
não o que poderá fazer de diferente para a sociedade. Mais uma vez, perde-se a
honra, permanece o status.
É possível perceber diversos
tipos de “carteiradas”. Há a mais grotesca, que caracteriza abuso de poder, na
qual a autoridade pública desvia a finalidade do seu cargo e exige benefício
próprio. Há a carteira sutil, a famosa cortesia: “Tem cortesia para policial?”.
Se sim, você entra de graça; se não, você paga tranquilamente. Porém, sua
função pública já está exercendo uma intimidação velada ao particular. Ao meu
ver, a imposição ainda ocorre, contudo de forma diplomática, além do fato de
haver um beneficiamento pessoal em razão do cargo público, ou seja, desvio de
finalidade da mesma forma que a anterior.
Há colegas que se orgulham
de apresentar a carteira e observar, com sua visão periférica, outras pessoas
na fila se surpreendendo com a entrada diferenciada de um policial à paisana.
Há também os que dizem que proprietários de boates imploram pela entrada deles
no estabelecimento, pois acreditam que sua presença irá gerar segurança. E,
assim, cedem à “pressão” e entram gratuitamente. Isso ocorre muito em cidades
pequenas. Mas, neste contexto, surge outro fator.
No ato da concessão, muitas
vezes internamente o proprietário espera um “alívio” em uma futura fiscalização
na boate. De um lado, aparenta-se um acordo invisível, uma intenção obscura que
pode levar à corrupção. Isto é, o proprietário não cobra do policial esperando
que o policial se omita na fiscalização. Por outro lado, ainda que o policial
não se leve pela tentativa do empresário e aplique a Lei numa futura
fiscalização, a moralidade no cumprimento da função se reduz, pois a autoridade
pública não será respeitada pelo particular que sofre sua repreensão, uma vez
que este já deu agrados para aquele. Gera-se um desconforto.
Cabe dizer que “carteirada”
não se confunde com o exercício do direito de porte de arma em todo território
nacional. Há policiais que acham que, como podem entrar em qualquer lugar
portando arma de fogo, têm o direito de não pagar pela entrada. O
estabelecimento privado presta serviços e pode cobrar pela utilização,
inclusive, do espaço. Ainda há um pouco do direito de propriedade resguardado
neste país. É claro que, em prol da Segurança Pública, em situação de Missão,
com finalidade laboral, essa exigência pode ser relativizada.
Colegas mais conscientes que
defendem a “carteirada” se apegam na tese de que não é possível saber se um policial
investigativo (PF e PC) está de Missão ou não, já que a Ordem de Missão, quando
há, não pode ser apresentada. Isso me faz refletir novamente quanto à ética:
quando não se pode provar, não se pode questionar. Em outras palavras, a
consciência não é suficiente para fazê-lo pagar o ticket quando o fim é
diversão, e “carteirar” legalmente apenas quando o fim é trabalho. É a lógica
da “enganação”. Se ninguém está vendo, por que ser honesto? Pelo exposto, penso
que, em momento de lazer, o correto seja pagar pela entrada e exercer
normalmente seu direito de porte.
O pior de tudo é que essa
cultura de diferenciação no âmbito da Classe Policial faz com que as demandas
dos sindicatos sejam mesquinhas, principalmente dos cargos menos favorecidos na
Carreira Policial (se é que se pode chamar de “carreira” o que existe nas
polícias brasileiras). Assim, surge o que eu chamo de “Carteirada
Institucionalizada”. Isto é, em prol da condição de Policial Federal, por
exemplo, o Sindicato consegue benefícios, como desconto em concessionária de
veículos, desconto em escola de línguas, desconto em áreas de lazer, ponto
eletrônico facultativo (que ainda não vi beneficiar quem trabalha), melhor
plano de saúde, dentre outros.
Pensando economicamente seria
viável para as empresas celebrar esse acordo com entidades que lhes ofereçam
maior demanda, e pode haver mais demanda se o público alvo for vendedores
varejistas, e não, por exemplo, Policiais Federais. Embora haja outras
variáveis, como renda, não me convenço de que os acordos não sejam pelo status.
Assim, um vendedor varejista, que tem menor renda, não tem esses descontos.
Percebe-se, portanto, que as tentativas de diferenciações só beneficiam os que
menos precisam.
O prejudicial é que as
grandes causas da luta sindical ficam em segundo plano. E isso é ótimo para
quem não quer ver o avanço dos Agentes de Polícia Federal, por exemplo. O que
vejo como principais medidas são: tratar uma representação que se reduz a uma
cópia literal de um Relatório Investigativo como plágio; buscar a autonomia de
setores chefiados por Agentes e Escrivães para poderem enviar Ofícios para
outros órgãos, afinal, a maioria já é feita por eles, porém sem sua assinatura;
pedir autonomia pelo menos na fase investigativa de IPLs que provoquem
Operações Policiais, comunicando-se formalmente com o MP mesmo sem derrubar a
figura do Inquérito Policial; promover
capacitação de liderança e produção de Relatórios de Análises para EPA’s (seja
da Inteligência Policial, do Núcleo Operacional, do Setor de Análise ou da Polícia
Administrativa), porque muitos clamam por Carreira Única, mas não sabem colocar
no papel de forma elaborada e completa o que investigam.
Ou seja, apresentar-se à
sociedade como Agente Público de credibilidade e galgar passos no Judiciário
para mudar, em pontos específicos, a estrutura vigente, pois o MP e o
Judiciário são quem mais conhecem a estrutura da Polícia Judiciária no Brasil.
Ao invés disso, busca-se no Judiciário benefícios financeiros, e espera-se por
Lobbys no Congresso Nacional para uma alteração legislativa que mude tudo no
que se refere à autonomia e crescimento profissional. Entretanto, estas vontades
necessitam de trabalho, de dever, de aperfeiçoamento, e é isso que às vezes é
decepcionante: a luta de aumentar os direitos sem elevar as responsabilidades,
por exemplo, assumindo previamente patamares de maior visibilidade.
Talvez não tenha ficado
claro, mas o principal objetivo do texto foi mostrar que a “causa” deve se
isentar de “esmolas”, de diferenciações. A luta principal deve ser a autonomia,
a remuneração extra pelo resultado no trabalho por meio de promoções e o
salário equiparado a outras classes profissionais. Afinal, todos têm sua função
social, todos demandam esforço e habilidades específicas, seja um gari ou um
deputado. Quando chegarmos nesse nível, as profissões vão atrair pessoas pelo
que elas gostam, e não porque o pai obrigou a fazer Medicina ou Direito, nem
porque ganha “bem” e é estável.
Quanto à “carteirada”, para
finalizar, se no Brasil houvesse uma cultura de heroísmo policial, na qual
tivesse um ajuste entre sociedade e polícia, e a entrada gratuita fosse tratada
como atitude nobre, como ocorre em países desenvolvidos, eu me calaria. Mas no
Brasil não, no Brasil é “feio”. As pessoas criticam essa atitude, elas não lhe
conferem o mesmo respeito ao policial que não aceita a “carteirada”. O caminho
é, primeiramente, conquistar a sociedade, e depois usufruir do reconhecimento.
É muito chão pela frente!
As mudanças precisa ser mais profundas, não apenas no policial, mas também nos cidadãos. A palavra que resume o conjunto de acontecimentos necessários para o ideal, chamo de EDUCAÇÃO do sentido amplo para o estrito, desde as políticas governamentais de educação, até os ensinamentos de casa. Acho que mais 500 anos pela frente. Nosso olhar para esses problemas sociais, que afetam povo, funções públicas e a todos que nesse país estão, trazem apenas tristeza e até uma ponta de desesperança, então as vezes evito pensar a fundo, pois a sociedade não quer a verdade, não é o momento, sendo assim vivemos, fingindo a ignorância que no Brasil, na maioria das vezes, é uma bênção.
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