3 de abril de 2020

Implicações sobre a Combinação de Arma, Balada e Bebida



           Após o ingresso na polícia, os familiares se assustam com o porte de arma e questionam a necessidade de estar sempre armado. Sentem mais medo e ameaça do que proteção. Mas, ao se tornar policial, o indivíduo que entendeu o verdadeiro espírito da função fará justiça mesmo fora de serviço, como intervir em um mau trato ou parar o trânsito para uma velhinha atravessar a rua.

Essa nova pessoa não mais se permitirá estar no papel de vítima, resguardando sua incolumidade pessoal em roubos e furtos do dia a dia, por exemplo. Se um policial não conseguir se defender fora de serviço, que credibilidade dará a si para defender outrem durante o serviço? Além disso, o policial tem que conviver com constantes ameaças oriundas de sua atividade. Para tal, sua ferramenta de trabalho é necessária em todo o momento. Por último, estar com a arma de fogo é também evitar o extravio que poderia haver caso ela estivesse em outro lugar.  

Entrada de policial armado em Casas de Shows

            Estar integralmente armado implica o porte de arma de fogo em momento de lazer, como em bares, eventos e boates. Mas isso é permitido? Claro. O art.6 º, inciso II, da Lei nº10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento), confere aos membros dos órgãos de segurança pública o porte de arma de fogo em todo o território nacional. O § 1º do mesmo artigo informa que essa prerrogativa se mantém mesmo fora de serviço e reforça que a validade é em âmbito nacional.

            Contudo, em meio a discussões, é comum ouvir dos proprietários de casas de shows as frases “esta é a regra do estabelecimento”, “o estabelecimento é meu e entra quem eu quiser”. Cabe informar que nenhuma regra individual pode se impor ao público contrariamente a uma lei federal; ademais, há diferenças consideráveis entre espaço privado (casa, sítio), espaço público (praças, ruas, praias) e espaço acessível ao público. Este trata-se de propriedade privada aberta a qualquer indivíduo, desde que sejam preenchidas condições, como consumação ou pagamento de ingressos. É o caso de shoppings centers, boates e alguns parques. Percebe-se que a maioria desses locais é voltada à utilização de produtos e serviços, implicando concessões de alvarás e obtenção de lucro, o que traz para o debate o direito do consumidor.
           
O art.39, inciso II, da Lei nº8.078/1990 (CDC- Código de Defesa do Consumidor) veda ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas, recusar atendimento às demandas dos consumidores. Além disso, a Lei nº8.137/1990, define em seu art.7º os crimes contra as relações de consumo, na qual a conduta de impedir a utilização do serviço pode ser enquadrada. Logo, da mesma forma que um estabelecimento não pode se recusar a receber um cliente negro, por ser racismo; uma boate não pode impedir um policial de entrar armado, por ser descumprimento da prerrogativa de porte de arma e do direito do consumidor.

Lembra-se que a prerrogativa de porte de arma é para todos os órgãos de segurança pública. Ocorre muito de boates permitirem a entrada de Policiais Federais e Civis e impedirem a entrada de Policiais Militares, injustamente.

“Guarda-Volumes” para Pistolas e Carregadores
           
Muitos estabelecimentos condicionam a entrada do policial à entrega do armamento na portaria, seja completo (arma e munições) seja apenas o carregador com munições. Para isso, providenciam cofres ou armários na maioria das vezes em péssimas condições. Esse é outro erro crasso que os donos, gerentes e seguranças de boates cometem.

Além das imputações já ditas, nesse caso eles podem ser autuados por porte ilegal ou posse irregular de arma de fogo (art.14 e art.12 da Lei nº10.826/2003, respectivamente), visto que na maioria dos casos esses indivíduos não detêm prerrogativa para manusear ou ter a arma de fogo sob sua guarda. O vigilante, por exemplo, somente pode portar a arma da empresa de segurança privada.

Neste contexto, há os policiais que exercem a segurança privada de casas de shows. Teoricamente, eles têm porte de arma e poderiam guardar a arma do cliente enquanto ele se diverte. Entretanto, surgem duas questões. A primeira é que os decretos regulamentadores do Estatuto do Desarmamento (Decreto nº9.845/2019, art.3º, § 6º; Decreto nº9.847/2019, art.17) determinam que tanto a aquisição quanto o porte de arma são pessoais e intransferíveis, não podendo o proprietário ceder ou emprestar o armamento, sob pena de crime previsto no art.14 da Lei nº10.826/2003, seja ele um civil ou um policial. Ademais, o § 8º, do art.4º, do Decreto nº9.845/2019, diz que as armas de fogo particulares e as institucionais não brasonadas deverão estar acompanhadas do CRAF. Portanto, as armas brasonadas não precisam dessa exigência, bastando estar com o policial do respectivo órgão, mais um motivo pelo qual o policial não pode cedê-las ao policial da segurança do evento.

A segunda questão é que o exercício dessa função é irregular, visto que o trabalho policial exige dedicação exclusiva, justamente devido ao poder de coerção desse tipo de profissional na execução de atividades paralelas. Embora haja policiais de boa-fé fazendo “bico” em boates apenas para complementar a renda, essas condutas podem evoluir ou já emanam de uma onda de irregularidade, atraindo policiais que praticam vários atos ilegais, inclusive com participação em milícias, grupos de extermínio e outras organizações criminosas. Em outras palavras, hoje trata-se do comando de uma boate; amanhã do comando de um bairro ou grupo criminoso.

Diante da nocividade e da evidente ilegalidade da conduta, o indicado é que o policial ultrajado colete informações do policial infrator (qualificação, foto, vídeo) para medidas posteriores ou acione imediatamente a Corregedoria do órgão responsável.

Em relação aos porteiros civis, é frequente a contratação clandestina de segurança privada. Proprietários colocam empecilhos que desobedecem ao normativo federal quanto à entrada de policiais, mas sequer cumprem os regulamentos de segurança privada. Caso o policial que teve seus direitos infringidos seja um Agente Federal, é sua atribuição averiguar a regularidade da atividade. Como o policial está em lazer e não tem uma Ordem de Missão para isso, convém, no mínimo, coletar informações (qualificações, fotos, vídeos) para medidas posteriores.

A Lei nº9.017/1995 atribui à Policia Federal a fiscalização das atividades de segurança privada, que é regulamentada por decretos e portarias que impõem restrições para se considerar atividade legal, como o vínculo do indivíduo a uma empresa especializada e a Carteira Nacional de Vigilante – CNV. Sem isso, a atividade pode ser equiparada à de pistoleiros em fazendas, que realizam busca pessoal e controlam o fluxo de pessoas sem estarem aptos e autorizados, configurando constrangimento ilegal (art.146, CPB). O descumprimento dos requisitos leva a casa de show a responder um processo administrativo na PF e à proibição da segurança privada clandestina.

Relação da Ordem de Missão com a Carteirada

            Uma irregularidade comum das casas noturnas é condicionar a entrada do policial armado à apresentação de OM-Ordem de Missão, permitindo inferir que utilizam a premissa de que o policial somente pode estar armado quando em serviço. Como já dito, isso está errado; não é à toa que se criou a máxima de que “policial trabalha 24h por dia”, tendo o dever de agir em qualquer momento que seja demandado.

            A existência de OM simplesmente elevará a situação para a possibilidade de o policial (armado ou não) entrar sem pagar pelo ingresso, pois se entende que ele entrará para realizar um serviço específico e em seguida ir embora. Trata-se da “carteirada legal”. Quando não há OM, o policial terá que pagar pelo espaço de lazer que desfrutará, mas jamais pode ser impedido de portar sua arma de fogo.

            Nesse ínterim, vem à tona a grande falha dos policiais: a carteirada; ato de entrar em evento sem pagar pelo ingresso mesmo estando em lazer. Embora o dever de agir do policial seja integral, não se pode conferir total liberdade em razão de sua função em uma sociedade de diversos interesses, como os interesses comerciais do dono da boate. Não obstante, os policiais fazem uso deliberado de carteirada, o que iniciou uma cultura dos representantes de boates exigirem a OM para liberar a entrada sem custos, desprezando totalmente a fé pública do servidor ao dizer “estou a trabalho”, e com razão.

            O problema disso é quando um colega de fato precise usar a “carteirada legal” por estar acompanhando um alvo e acaba sendo vítima dessa interrupção na porta da casa noturna. Até acionar gerente, proprietário e às vezes PM, o alvo se perdeu de vista ou já realizou o ato objeto do monitoramento. O policial que está verdadeiramente de missão não irá, é claro, revelar o conteúdo da OM. É um documento sigiloso que, ao ser compartilhado com administradores da casa noturna que o alvo frequenta, pode gerar sérios prejuízos para a investigação em curso. Por isso a fé pública do agente da lei é tão importante e deve ser ao máximo preservada por ele, a começar evitando dar carteirada com base na prerrogativa funcional em momento de lazer.

            Esse empecilho criado por donos das boates tem fulcro também nas vezes em que o policial informa que está em serviço, mas é flagrado ingerindo bebida alcoólica, o que gera dúvidas sobre a legitimidade da sua entrada. Todavia, há situações em que essa medida é necessária, como numa aproximação ao alvo ou aplicação de história cobertura em pessoas do ambiente. Certamente a necessidade estará discriminada na OM, na qual o representante da boate não tem acesso. Se for o caso, mantenha-se na missão e peça o segurança para averiguar com a delegacia ou sede do órgão.

            Portanto, se a exigência para entrar armado estiver vinculada à recusa de pagar ingresso, o policial perderá a razão. Fora isso, vá até as últimas consequências que, ainda que o caso pare na Justiça, há grande possibilidade de ser indenizado moralmente, pois é claro o constrangimento ilegal ao impedir um policial de exercer seu trabalho (no caso que tenha OM) ou de usufruir da prerrogativa de porte de arma em todo território nacional (no caso que não tenha a OM, mas pagou o ingresso). 

Solicitação de Informações Funcionais

            Diante de toda essa confusão possível de ocorrer, há uma forma razoável de o gerente ou segurança da boate lidar com a situação: coletar informações sobre o policial. A prática começou com a justificativa de terem o controle de policiais da festa e, em caso de ocorrência de crimes, como rixas e agressões à mulher, a atuação dos policiais será cobrada. Soa como uma represália à imposição dos agentes que entram armados e gratuitamente, e à máxima de que são policiais 24h por dia. Foi uma boa estratégia.

            Em suma, o policial informa nome, matrícula, órgão e número e modelo da arma antes de entrar na balada. Abusos ocorrem por parte do estabelecimento, como a tentativa de realizar cópia da carteira funcional, mas são pouquíssimos casos. Cabe esclarecer que a carteira funcional não é um mero documento pessoal de identificação, mas carrega informações almejadas por muitos criminosos e, por isso, não pode cair em mãos erradas. Além de temeroso, é insensato pedir cópia de carteira funcional a policial.

Ingestão de bebida alcóolica estando armado

            Finalmente o policial entra na balada. E agora, ele pode beber? Sim. Não há nada que impeça alguém que tenha porte de arma de ingerir bebida alcóolica quando estiver com sua arma. Em algumas situações isso até pode ser inoportuno e desnecessário, mas o porte de arma policial é uma prerrogativa vinculada a uma função com grande representatividade na sociedade, e o ônus dessa função se derrama contra o servidor também em seu momento de lazer. E consumir bebida alcóolica pode fazer parte do lazer dessa pessoa.

            Se tivesse essa restrição, os bandidos saberiam que podem abordar um policial em momento de lazer em um cenário com bebida alcoólica, como bares e festas. Além do risco maior da própria classe, a segurança da sociedade também estaria afetada, pois não se poderia exigir do policial o dever integral de agir, já que nem sempre ele estaria com sua ferramenta de trabalho. Frente a isso, as Corregedorias, no geral, proíbem o uso de bebida alcoólica durante o serviço – salvo casos bastante peculiares principalmente relacionados à investigação, como já ditos – e permitem o seu uso racional fora de serviço.

Após consulta formulada por proprietária de estabelecimento comercial de entretenimento, a Corregedoria de Policia Federal do Estado do Pará emanou parecer no dia 24 de maio de 2016, que diz: “Não há previsão legal que proíba o policial federal de portar arma de fogo e ingerir bebida alcoólica, não havendo crime em tal conduta. Todavia, importante ressaltar que excessos podem se amoldar em crime(s), caso o policial venha a utilizar de forma inadequada e com abuso de poder sua arma de fogo, sendo necessário avaliar detidamente o caso concreto (...) Não há previsão disciplinar que proíba o policial federal de portar arma de fogo e ingerir bebida alcoólica fora de serviço e em aglomerações/bares, SEM causar transtornos/escândalo. Todavia, qualquer excesso é punido na esfera disciplinar (Lei nº 4.878/65 e nº8112/90).”.

E finaliza exemplificando casos de civis que têm porte de arma: “até mesmo ao particular que possui autorização para o porte de arma de fogo de uso permitido, a regra quanto ao consumo de bebidas alcoólicas é a moderação, só havendo a previsão de punição administrativa, com a perda automática de sua autorização, se for abordado em estado de embriaguez ou sob efeito de substância química ou alucinógena, nos termos do art.10, § 2º da Lei nº 10.826, de 22/12/2003”. 

Em complemento, a Corregedoria de Policia Federal do Estado do Paraná emanou parecer em 2017 versando sobre a razoabilidade; deixando implícito, porém, que não é proibido: “os policiais federais são orientados a abster-se de consumir bebida alcoólica em locais de festa, quando estiverem portando arma, ainda que estejam fora de serviço, sendo certo que serão responsabilizados por EVENTUAIS danos que venham a causar a outrem, em consequência de embriaguez, notadamente se houver uso indevido de sua arma de fogo”. Ou seja, serão responsabilizados pelos danos causados a outrem, e não pelo mero fato de estar portando arma e bebendo.

E se der algum problema?

            As Corregedorias deixam claro que não há proibição. Logo, caso o policial cometa crime no interior da casa noturna, ele será alvo de uma investigação criminal, como qualquer outra pessoa. Independentemente se ocorreu em boate, bar, clube, ou sob efeito de álcool ou não. E caberá à Justiça julgar sua culpabilidade.

Muitos equiparam aos casos de “beber e dirigir”. Nestes, o indivíduo consuma o crime na mera conduta, ao contrário dos casos de “estar armado e beber”. A explicação para estes é que a segurança pública – defesa pessoal do agente e proteção às pessoas – é um bem maior que o risco de alguns policiais cometerem excesso; já para aqueles foi demonstrado estatisticamente que a restrição da liberdade é um custo pequeno diante dos acidentes de trânsito causados por embriaguez.

Há quem diga que a responsabilidade recai para o produtor do evento caso o policial cometa um ilícito dentro da boate. É o posicionamento, por exemplo, do Sindicato de Empresas de Eventos do Distrito Federal, organizado pelas seis maiores empresas do ramo na capital federal. Entretanto, não há relação entre uma conduta do policial e o estabelecimento de eventos, por um motivo simples: a empresa simplesmente cumpriu as leis vigentes. Assim, a responsabilização será exclusiva do policial e outros envolvidos. 

Por parte das empresas de eventos, é compreensível tão somente o custo mercadológico que ela teria caso uma discussão entre um policial e outro cliente levasse a um homicídio. A famosa frase de proprietários de boates “é perigoso acontecer alguma coisa” na falsa intenção de se isentarem de futuras responsabilizações é, na verdade, uma preocupação relativa à imagem do negócio.

Apesar disso tudo, há que se dizer que há controvérsias. O Tribunal Regional Federal da 4º Região já decretou a perda de função pública de Agente de Polícia Federal por ato de improbidade administrativa, entendendo que o princípio da legalidade foi ferido ao estar usando arma embriagado. O Tribunal entendeu que o constante no art.10, § 2º, da Lei 10.826/2003 é extensivo também aos indivíduos que tem porte de arma devido à sua função pública, e não apenas a civis que adquiriram o porte mediante concessão da PF e registro no SINARM. Porém, arrisco em dizer que as punições do Judiciário e recomendações do MP com teor severo dizem respeito a situações que se relacionaram à prática de carteiradas ou “alterações” de policiais.

A opção de deixar a arma em casa

            A grande maioria das pessoas desconhece as informações apresentadas aqui e não entende o motivo de policiais levarem arma para balada ou o motivo de eles frequentarem esses lugares. Afinal, poderiam evitar muita coisa.

            A primeira resposta nos remete ao início deste artigo, principalmente no que tange à inadmissibilidade de assistir ou sofrer um delito e não ter condições para agir. A segunda resposta refere-se ao fato de a atividade policial ser extremamente estressante. Muitas missões os colocam longe da família em lugares precários – como ocorre muito na PF, PRF e Força Nacional – e umas das poucas opções de lazer são bares e casas noturnas. Há policiais que se encontram em um conflito entre a utilização do serviço de uma boate pertencente ou habitada por indivíduos de conduta moral inidônea e o martírio psicológico provocado pela solidão e distância.

            De todo modo, a chave disso tudo é a RAZOABILIDADE. Se o policial quer extravasar e vai beber muito, torna-se razoável que não leve a arma, mas isso é uma opção dele. Na ocorrência de um ilícito, será muito difícil de se defender e pagará pelo risco que assumiu. E se o policial vai beber tranquilamente, não há por que julgar negativamente sua conduta.

A maior parte dos policias não chega até as últimas consequências ao serem interrompidos em porta de boates, justamente por não quererem arruinar sua noite. Ou atende a exigência ilegal e entra, ou não aceita e procura outro lugar. Tudo para evitar confusão. Isso é louvável, mas também a lei deve ser resguardada, para que os abusos de boates não se alastrem e tornem cada vez mais corriqueiros. Ainda que posteriores, o correto é tomar as medidas cabíveis.

Por fim, resumidamente, meu conselho e hábito são: entre na balada portando sua arma, se você quiser. Não a deixe com segurança (seja civil comum ou PM em atividade clandestina). Não a deixe em cofre ou armário. Não apresente a Ordem de Missão, se você tiver uma. Apenas informe e entre para realizar o serviço, pagando ou não. Se não tiver em missão, entre armado, mas pague pelo seu ingresso. Caso o estabelecimento peça os dados funcionais, dê cordialmente, mas jamais deixe tirar cópia da sua funcional. Quanto à ingestão de bebida alcoólica, apenas maneire.

Você pode pensar: “mas não seria muito poder para o policial? ”. Sim, por isso é uma profissão tão digna que deve ser respeitada, pelos cidadãos, mas, principalmente, pelos próprios policiais.