20 de agosto de 2025

ASCENÇÃO DA PRF: COMBATE À CRIMINALIDADE E MODERNIZAÇÃO DAS POLÍCIAS


A Constituição Federal, em seu art.144, § 2º, diz que a Polícia Rodoviária Federal é órgão da União, estruturado em carreira, destinado ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais. Na prática, isso se resume às fiscalizações de rodovias, onde o “guarda” controla o fluxo de veículos, a fim de identificar excesso de carga, documentação atrasada; aplicar multa; e, oportunamente, combater o crime.

Com o passar dos anos, a PRF se aparelhou, renovou seu quadro pessoal, expurgou corruptos, criou grupos táticos, reestruturou a Acadepol em Florianópolis/SC, investiu em sistemas de monitoramento de tráfego veicular aproveitando a instalação de câmeras e radares nas rodovias, criou setores de inteligência policial que analisa dados brutos em busca de padrões de ações criminosas nas rodovias (há que se observar que inteligência policial não se confunde com polícia judiciária, mas isso é tema para outro artigo). Naturalmente, ampliou sua capacidade de enfrentamento ao crime organizado. Logo, não se pode esperar que essa nova Instituição se restrinja apenas às fiscalizações em rodovias.

Paralelamente a isso, nota-se uma sobrecarga de demanda nas polícias judiciárias do Brasil (Polícia Federal e Policiais Civis dos Estados), além de um modelo de instrução criminal extremamente arcaico e ineficiente. Assim, na tentativa de acompanhar a modernização das organizações criminosas, que cada vez mais contam com tecnologias e lavagem de dinheiro, foram criados departamentos investigativos que conferem mais dinamicidade à instrução criminal.

É o caso das FICCO’s-Força Integrada de Combate ao Crime Organizado, geridas pela PF; e os GAECO’s- Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado, geridos pelos MP’s. Estes grupos são formados por policiais com expertise, independentemente de qual órgão policial pertençam, seja ele de função precípua ostensiva ou investigativa. Em outras palavras, um policial penal ou um policial militar pode compor esses grupos e realizar investigações, ainda que sua função precípua no seu órgão de origem seja “patrulhamento ostensivo”. Eu aprecio essa adequação do Estado, pois o crime evolui sem parâmetros ou regras burocráticas. Não podemos ficar para trás.

Em outubro de 2019, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), sob comando de Sérgio Moro, instaurou a Portaria Nº739, que estabeleceu diretrizes para a participação da Polícia Rodoviária Federal em operações conjuntas nas rodovias federais, estradas federais ou em áreas de interesse da União. Em 2021, houve também a Portaria Nº42, que conferiu ao órgão a participação em operações conjuntas com os órgãos do Sistema Único de Segurança Pública-SUSP. Ou seja, formalizou-se, ainda que apenas no âmbito do Executivo, a ampliação de ações da PRF que já vinham ocorrendo.

Essas regulamentações fizeram o órgão decolar de vez. A partir disso, a PRF se consolidou como uma polícia respeitada no combate à criminalidade, especialmente no tráfico de drogas e armas, sendo possivelmente a instituição policial com maior apreensão de entorpecentes de 2020 a 2022.

Cabe dizer que a principal rota de entorpecentes e armas oriundos da fronteira do Brasil, principalmente com o Paraguai, Bolívia e Peru, ainda é por modal viário. Parte desses ilícitos é distribuída no país, e outra parte atravessa nosso território, para ser escoada para a Europa por meio de containers carregados nos nossos portos. Ao contrário dos entorpecentes oriundos da Colômbia, por exemplo, que muitas vezes priorizam o modal fluvial no Estado do Amazonas ou voos clandestinos.  Portanto, todo esse cenário demonstra a importância da atuação da PRF no combate ao crime.

Todavia, essa ascensão da PRF incomodou muita gente, tanto por ideologia quanto por corporativismo. E, infelizmente, forças políticas começaram a se articular para minar esse crescimento. No início de 2023, o ministro da Justiça e Segurança Pública Flavio Dino deu sinais de que reduziria a ampliação dos poderes da PRF, muito devido ao sentimento de revanche provocado pelo alinhamento político entre diretores da PRF e Jair Bolsonaro. Inicialmente, foram retiradas funções de confiança (DAS e FG’s) e encerrados núcleos de inteligência. Em seguida, em dezembro de 2024, o MJSP, agora sob comando de Ricardo Lewandowski, instaurou a Portaria Nº 830, cessando a atuação da PRF nas operações conjuntas. Na esteira dessa ordem, o diretor geral da PRF suspendeu parcerias com a Polícia Federal e Ministério Público através do Ofício Circular Nº 3/2025/DG, retirando os policiais rodoviários federais das FICCO’s e GAECO’s, por exemplo.

Portanto, na contramão da modernização na Segurança Pública, volta-se a PRF para a “guarda de trânsito”. É como eu sempre digo: nada mais conservador que um progressista no poder. A História mostra que toda evolução social se inicia com pequenos padrões de comportamento que vão mudando aos poucos, adequando-se aos novos tempos, e começam a ser aceitos pela coletividade, até que um dia o contrário disso é que se torna o absurdo. E assim surgem alterações legislativas para legitimar aquilo que já se tornou costume, já se tornou o certo. Esse processo se aplica à abolição da escravatura, à promulgação de direitos civis a casais homossexuais, dentre tantos outros. Por que seria diferente para a Segurança Pública? Espanta-me o fato de justamente os políticos progressistas, das minorias, do ideal de confronto ao sistema vigente e ultrapassado, sejam os que tomam decisões mais reacionárias na Segurança Pública. A resposta mais burra de um ser pensante é “não pode porque a Lei não deixa”. Aliás, a Polícia FERROVIÁRIA Federal, órgão também previsto na CF/88, sequer sobreviveu, devido à escassez de malha ferroviária no país, mas ainda está lá expresso. Mais um indicativo de que a Carta Magna está longe de refletir a realidade do país em matéria de Segurança Pública.    

Indagando-me sobre esse retrocesso, deparo-me com outra questão: o corporativismo. A ascensão da PRF ameaça muitas castas dominantes presentes na estrutura da Segurança Pública no Brasil. A PRF é uma instituição policial desmilitarizada, sendo o principal lema “orgulho em pertencer”, e não “hierarquia e disciplina”. E isso significa que ela não possua hierarquia? Não, ela possui, porém suas funções de gestão e comando são assumidas por servidores com habilidade para tal, sem direcionamento de patentes ou advogados de formação. A PRF também não particiona seu quadro pessoal entre os plebeus e os fidalgos, isto é, possui carreira única, com apenas um cargo policial e uma entidade de classe (FENAPRF), não havendo conflitos de interesses classistas dentro da própria Instituição, o que dispersa muitos pleitos na PF, PC’s e PM’s, por exemplo.

Além disso tudo, ao lavrar TCO’s, realizar inteligência policial e análise de dados, e atuar diretamente com o Ministério Público, a PRF se aproxima do conceito estrutural de polícias de países desenvolvidos; o chamado Ciclo Completo de Polícia. Nele, o órgão policial que se depara com o crime tem a atribuição de tratá-lo tanto na fase ostensiva quanto na fase investigativa da instrução criminal. Ou seja, lida integralmente com a situação, do início ao fim, focando na aplicação técnica, investigativa e operacional, e deixando os pareceres jurídicos tão somente com o Ministério Público.

Atualmente, o que ocorre é que a PM ou PRF atuam somente na fase ostensiva – geralmente inicial – do trabalho policial. E após capturar o criminoso, realizar registros, apreender veículos, etc, entregam toda a coleta de dados para a PC ou PF, onde é lavrado o flagrante e tudo é feito novamente: registros, apreensões, papeis e mais papeis. Aqui os policiais ostensivos esperam por horas até serem liberados para retornar às suas atividades, às vezes até após a liberação do próprio conduzido. Por fim, antes de finalmente chegar ao Ministério Público, o caso ainda deve passar pelo parecer jurídico do Delegado de Polícia, no chamado “indiciamento”. Parecer que muitas vezes é desaproveitado pelo MP.

Ademais, é injusto uma polícia iniciar um trabalho e não ter direito de dar continuidade. O celular que uma polícia apreendeu só pode ser analisado pela outra; o veículo que uma polícia apreendeu provavelmente será usado pela outra, após o juiz dar perdimento; dentre outros fatores. Por exemplo, já teve época de a polícia ostensiva apreender 50kg de entorpecente, computando a apreensão em seu órgão; e, no momento da entrega dessa droga para a polícia investigativa, novo registro é realizado neste outro órgão, gerando duplicidade em estatísticas nacionais de criminalidade. Em tempo, as polícias investigativas não dão conta de todo o escoamento gerado pelas polícias ostensivas, que possuem efetivo muito maior. O resultado disso é o enorme volume de inquérito policial que não avança.

Enfim, no Brasil há divisão ENTRE as polícias (ostensiva x investigativa), e mais divisão DENTRO das polícias (oficiais x praças; delegados x agentes), e a PRF quebra esses dois equívocos estruturais. Ela é a polícia brasileira que mais se amolda aos padrões de polícias mais eficientes do mundo. Se não fossem os últimos acontecimentos, ela seria com certeza a polícia mais atrativa para se trabalhar no Brasil. Obviamente, há muitos problemas, como todo órgão público e local onde pessoas se relacionam, mas no que diz respeito à estrutura policial, é fato que ela possui muitos fatores distintos das demais.

Particularmente, deposito na PRF a esperança para o futuro das polícias no Brasil. Creio que aposentarei sem presenciar essa evolução, mas o caminho trilhado pela PRF não tem volta. Podem até retardar o processo, mas o enraizamento cultural e consequentemente alteração legislativa de tudo que foi dito é inevitável.

11 de agosto de 2025

A ATIVIDADE DE DETETIVE PARTICULAR NO BRASIL



Há uma máxima na polícia de que delegacia atrai gente doida. Essa lenda existe porque frequentemente surgem denunciantes esquizofrênicos, bêbados, dentre outros, em uma delegacia de polícia. Apesar disso, é importante não ignora-los e constatar a veracidade da informação. Numa dessas, deparei-me com um denunciante de tráfico de drogas que se dizia detetive particular, inclusive apresentando uma suposta carteira funcional.

Coletei informações sobre a carteira e decidi realizar pesquisas sobre a atividade de detetive particular no Brasil. O que é? O que faz um detetive particular? Quais os limites legais? Existe regulamentação?

A Lei 13.432, de 11 de abril de 2017, dispõe sobre o exercício da profissão de detetive particular, considerando-o  “o profissional que, habitualmente, por conta própria ou na forma de sociedade civil ou empresarial, planeje e execute coleta de dados e informações de natureza não criminal, com conhecimento técnico e utilizando recursos e meios tecnológicos permitidos, visando ao esclarecimento de assuntos de interesse privado do contratante”.

No Brasil, uma das mazelas que assola a população é a péssima qualidade do serviço público, em que pese a alta taxa de impostos. Assim, paga-se por plano de saúde, apesar de existir o SUS; paga-se por escola particular, apesar de existirem escolas públicas; paga-se por manutenção de veículo, apesar de existirem transportes públicos. E em relação à segurança pública, o que fazer quando a polícia é ineficiente, por exemplo, para encontrar seu filho desaparecido? Uma alternativa é contratar um detetive particular.

Dito isso, as funções mais comuns do detetive particular referem-se a desaparecimento de pessoas; casos extraconjugais ou reaproximação de casais; temas que envolvam crianças e adolescentes, como o caso de um pai que quer saber se o filho se envolve com drogas; problemas com colaboradores da empresa (Inteligência Corporativa); coleta de informações em disputas eleitorais; coleta de provas para advogados em meio a um litígio judicial. Há ainda casos que podem adentrar na seara policial, como assédio sexual e uso inadequado da internet. Nestes casos, é essencial saber o limite da atuação do detetive particular.

Uma investigação policial é um ato de ofício, podendo ser gerida apenas por órgãos de Estado. O art.10, inciso IV, da Lei 13.432/2017, ratifica que o detetive particular não pode participar diretamente de diligências policiais. Contudo, a mesma Lei deixa uma ressalva no seu art.5, permitindo a participação formal após autorização do chefe da investigação e do contratante dos serviços do detetive.

Na prática, as informações coletadas pelo detetive particular que serão relevantes para autos de investigação acabam sendo juntadas com o teor de informações fornecidas por um denunciante qualquer ou um amigo da família da vítima. Afinal, essas informações são oriundas de técnicas abertas de coleta de provas que qualquer um do povo pode fazer: buscas em internet, registros públicos, pesquisas em redes sociais, vigilância, entrevistas, até gravações ambientais com equipamentos discretos de vídeo são possíveis, desde que sejam em locais públicos, tal qual fazem os repórteres investigativos.

Ressalta-se que os detetives particulares não têm prerrogativa para executar meios processuais de coleta de provas – que são aqueles que a polícia necessita do judiciário para realizar, como interceptação telefônica, análise de movimentação financeira, dentre outros. Caso o façam, deixam de realizar trabalho particular investigativo legal e passam a incorrer em espionagem.

Há duas grandes entidades representativas da categoria de detetives no Brasil: a ADB (Associação dos Detetives do Brasil) e a ANADIP DO BRASIL (Associação Nacional dos Detetives Privados do Brasil). Elas lutam no Congresso Nacional pela aprovação do Projeto de Lei 9323/2017, que cria identificação e registro do detetive particular junto à Polícia Federal. Ou seja, a PF seria responsável por ceder a carteira funcional ao detetive particular, mas isso ainda não vingou.

Outro engajamento das entidades diz respeito à criação do Conselho Federal de Detetives do Brasil (CFDB), que também não existe.  Trata-se do Projeto de Lei 1211/2011, que está estacionado há anos no Congresso Nacional. Já houve tentativas fraudulentas de se criar o Conselho Federal sem passar pelo trâmite legislativo, como os chamados CFDP, CONFIPAR-BR e CONAD, mas foram retaliados pelo MPF, visto que, em regra, os conselhos das profissões são considerados autarquias e compõem a administração pública indireta, necessitando de um trâmite específico para se instituir.

Os dois projetos de lei estão baseados na premissa de que a profissão de detetive particular é prevista na classificação brasileira de ocupações (CBO), do extinto Ministério do Trabalho, identificada pelo código 3518-05 como ocupação lícita em todo território nacional. Há registro semelhante para fins de previdência social, possibilitando contribuições que levem à aposentadoria do profissional da área.

É relevante dizer que existem várias empresas voltadas à prestação de serviço de detetive particular no Brasil, como a Empresa Brasileira de Investigações LTDA (EMBRAIL), a mais antiga de todas, fundada em 1992, no Rio de Janeiro. Aparentemente, seu fundador é bastante reconhecido entre os pares e se engaja em questões sindicais e de associações. Outra empresa é a Central Única Federal dos Detetives do Brasil (CUFDB), voltada para o ensino; oferece cursos para formação de detetives particulares e emite um modelo próprio de carteira de detetives, não seguindo o modelo da ADB. Ademais, também há diversas associações além das duas principais já citadas; algumas com atuação em determinada cidade, também com emissão de carteira própria.

Portanto, percebe-se que a profissão de detetive particular no Brasil ainda é prematura e desorganizada, carecendo de registro único, emissão de carteira nacional e Conselho Federal. Infelizmente a Lei 13.432/2017 basicamente informa que a profissão existe, deixando uma tremenda lacuna. 

Desta maneira, caso alguém se apresente como detetive particular para você, saiba que não é possível realizar uma constatação, tão somente verificar se o indivíduo está vinculado a uma empresa voltada à prestação de serviço no nicho e se essa empresa tem algum reconhecimento no mercado. No meu exemplo, tratava-se apenas de mais um maluco em delegacia.

 



Artigo publicado no SAGA POLICIAL (atualmente extinto), 
na data de 01/10/2020.