Por muitos anos
acreditei que o indivíduo é o principal agente de mudança no mundo, mas a
experiência me levou a crer que a maior parte das transformações é oriunda de
um processo natural do tempo, sobretudo no contexto policial, sendo o homem – neste
caso, autoridades policiais, congressistas, juristas, advogados – um
influenciador secundário.
Na Polícia Federal, a atividade pericial é reservada a um cargo policial. Assim, além de trabalho técnico-científico que subsidia investigações, os peritos podem realizar funções investigativas e operacionais, como pertencer a grupos táticos. Trata-se de um dos cargos com maior remuneração na instituição, e com o menor efetivo, conferindo-lhe uma sensação de essencialidade. Isso, juntamente com a suposta complexidade da função, os torna um subgrupo policial com muita força política.
Para fins de concurso público, o cargo de Perito Criminal Federal é dividido por áreas: área 1 (contábil/financeira), área 2 (elétrica/eletrônica), área 3 (informática forense), área 7 (engenharia civil), área 11 (cartográfica), área 12 (medicina legal), área 22 (ambiental), dentre outras. Todavia, durante o efetivo exercício, trata-se de um grupo apenas. Inclusive, havendo pertinência técnica, alguns tipos de perícia permitem participação de peritos de diferentes áreas. Já presenciei, por exemplo, perito ambiental realizando verificação de adulteração de veículo. Isso demonstra que a multidisciplinaridade – tal qual ocorre nos cargos de Agente, Escrivão e Papiloscopista – é um atributo maior que qualquer especialidade técnica, mas, ainda assim, toda atividade pericial é legalmente restrita ao cargo de Perito.
Não obstante, o tempo passou e transformações principalmente tecnológicas aconteceram, o que mudou o comportamento das pessoas: migração do uso de linha comum de telefone para aplicativos de comunicação; criação de armazenamento de dados em nuvem; produção em massa de aparelhos telefônicos portáteis; dentre outros. E essas são as principais fontes atuais de informações que levam à autoria e materialidade do delito. Isso explodiu a demanda por perícia em extração e indexação de dados em aparelhos eletrônicos e mídias de armazenamento de dados, como celular, notebook, pen drives, HDs, cartões de memória.
Por consequência, a perícia não suportou a demanda e os gestores destinaram essa função também aos policiais de outros cargos, como Agentes e Escrivães, especialmente pertencentes aos setores de Inteligência Policial. Foi realizada a capacitação desses policiais e adquiridos novos equipamentos e licenças necessárias para a realização do trabalho pericial de extração de dados. Quanto ao Laudo Pericial, documento que materializa o feito, recebeu outro nome quando confeccionado por policial de outro cargo: Informação de Polícia Judiciária de Extração de Dados.
Aliás, há anos algo parecido já ocorre na Polícia Federal, sem questionamento judicial. Trata-se dos Laudo Periciais Preliminares realizados por outros cargos policiais em delegacias que não possuem setor técnico-científico. Isso ocorre durante apreensão de drogas, documentos falsos ou notas falsas, por exemplo. Nestes casos, é necessário um documento no momento do flagrante que demonstre, ainda que preliminarmente, a ilicitude do material. O Agente ou Escrivão que manuseia o reagente de entorpecentes ou conhece os elementos de segurança da cédula é quem realiza a perícia. E isso está regulamentado, na IN 94/2015-DG/PF, que disciplina a nomeação de peritos ad hoc no âmbito da Polícia Federal.
Paralelamente, cabe dizer que a exigência de nível superior para todos os cargos policiais, o aumento da complexidade das matérias cobradas nos concursos públicos, a cobrança por aperfeiçoamento profissional contínuo no mercado de trabalho e o avanço de ferramentas para impulsionar o conhecimento, como de inteligência artificial, são fatores que colaboraram para a formação de um quadro pessoal extremamente qualificado na Polícia Federal. Atualmente, boa parte dos policiais possui mestrado ou doutorado, leciona em universidades, realiza palestras em conferências policiais sobre temas técnicos os quais dominam. Além disso, o novo foco da segurança pública no combate à criminalidade, que é a descapitalização das organizações criminosas, redireciona as principais técnicas investigativas, fortalecendo a habilidade tecnológica dos policiais. Com isso, Agentes e Escrivães recepcionaram a nova atribuição com certa facilidade.
Obviamente, esse fenômeno gerou uma indagação legal, visto que o Código de Processo Penal, em seu art.159, diz “O exame de corpo de delito e outras perícias serão realizados por perito oficial, portador de diploma de curso superior.”, o que corrobora com a identidade intocável conferida historicamente aos Peritos. Contudo, o nosso CPP é antigo, e a jurisprudência ratifica a validade de “laudos” produzidos por outros cargos em perícias específicas, utilizando como base a IN 299/2025-DG/PF, recentemente instaurada na Polícia Federal, que diz em seu art.14: “(...) as atividades de polícia judiciária destinadas ao acesso a elementos de interesse em formato digital, por meio da extração, cópia, desbloqueio e contorno de bloqueio de dados armazenados em celulares, tablets e similares, ou em espaços cibernéticos, podem ser realizadas por qualquer servidor policial capacitado.” Frente a isso, até mesmo os advogados desistem da tentativa de invalidar investigações criminais através dessa matéria processual.
Essas práticas estão se consolidando porque possibilitam celeridade na instrução criminal. Reduziu-se sobremaneira o gargalo formado com meses de espera pelo setor técnico-científico para realização da perícia, quase sempre fazendo perder o time investigativo. Ademais, não apenas a qualidade técnica se mantém, mas também há um incremento investigativo, pois quando a perícia é realizada por policial com experiência em análise de dados ou em contato com o inquérito policial, ele cria tags e filtros durante a perícia que facilitam no momento da interpretação do conteúdo extraído.
Enfim, todo o exposto demonstra,
principalmente aos pessimistas, que não possuímos controle sobre as mudanças
que ainda estão por vir. Décadas atrás seria inconcebível pensar que chegaria
um dia em que outro cargo policial pudesse realizar perícia. Logo, podemos também
nos surpreender com o futuro da estrutura da segurança pública no Brasil. Felizmente,
a modernização em outros aspectos é apenas uma questão de tempo!
