10 de junho de 2017

CARTEIRADA, LUTA ERRADA



Eu não sei se é mal de brasileiro, mas a gente sempre se apega a um fator diferenciador classista para compensar a exigência de um esforço peculiar e, assim, chegar na referência de melhor remuneração. Essas diferenças de tratamentos, aparentemente, servem para igualar os desiguais ou para retribuir especificidades de cada profissão, mas, na verdade, ocasiona um sistema paternalista de retribuição, e não do efetivo resultado no trabalho.
No caso de um gari ou empregada doméstica, que recebem um salário mínimo, é necessário distribuição de renda. No caso de um deputado federal, que precisa representar o povo do seu estado-membro em Brasília, deve-se ter avião disponível.  No que diz respeito à Segurança Pública, tem-se aposentadoria integral, menor tempo de contribuição, ponto eletrônico facultativo – afinal, corre-se risco de morte e a profissão é desgastante – e, o mais especial, adentrar em lugares de forma gratuita.
A “carteirada” é um tema polêmico que protagoniza debates desde a Academia de Polícia; isso quando não é vista como benesse do cargo na época em que ainda é concurseiro, vislumbrando muitas vezes a regalia que terá no setor público (estabilidade, autoridade, etc), e não o que poderá fazer de diferente para a sociedade. Mais uma vez, perde-se a honra, permanece o status.
É possível perceber diversos tipos de “carteiradas”. Há a mais grotesca, que caracteriza abuso de poder, na qual a autoridade pública desvia a finalidade do seu cargo e exige benefício próprio. Há a carteira sutil, a famosa cortesia: “Tem cortesia para policial?”. Se sim, você entra de graça; se não, você paga tranquilamente. Porém, sua função pública já está exercendo uma intimidação velada ao particular. Ao meu ver, a imposição ainda ocorre, contudo de forma diplomática, além do fato de haver um beneficiamento pessoal em razão do cargo público, ou seja, desvio de finalidade da mesma forma que a anterior.


Há colegas que se orgulham de apresentar a carteira e observar, com sua visão periférica, outras pessoas na fila se surpreendendo com a entrada diferenciada de um policial à paisana. Há também os que dizem que proprietários de boates imploram pela entrada deles no estabelecimento, pois acreditam que sua presença irá gerar segurança. E, assim, cedem à “pressão” e entram gratuitamente. Isso ocorre muito em cidades pequenas. Mas, neste contexto, surge outro fator.
No ato da concessão, muitas vezes internamente o proprietário espera um “alívio” em uma futura fiscalização na boate. De um lado, aparenta-se um acordo invisível, uma intenção obscura que pode levar à corrupção. Isto é, o proprietário não cobra do policial esperando que o policial se omita na fiscalização. Por outro lado, ainda que o policial não se leve pela tentativa do empresário e aplique a Lei numa futura fiscalização, a moralidade no cumprimento da função se reduz, pois a autoridade pública não será respeitada pelo particular que sofre sua repreensão, uma vez que este já deu agrados para aquele. Gera-se um desconforto.
Cabe dizer que “carteirada” não se confunde com o exercício do direito de porte de arma em todo território nacional. Há policiais que acham que, como podem entrar em qualquer lugar portando arma de fogo, têm o direito de não pagar pela entrada. O estabelecimento privado presta serviços e pode cobrar pela utilização, inclusive, do espaço. Ainda há um pouco do direito de propriedade resguardado neste país. É claro que, em prol da Segurança Pública, em situação de Missão, com finalidade laboral, essa exigência pode ser relativizada. 
Colegas mais conscientes que defendem a “carteirada” se apegam na tese de que não é possível saber se um policial investigativo (PF e PC) está de Missão ou não, já que a Ordem de Missão, quando há, não pode ser apresentada. Isso me faz refletir novamente quanto à ética: quando não se pode provar, não se pode questionar. Em outras palavras, a consciência não é suficiente para fazê-lo pagar o ticket quando o fim é diversão, e “carteirar” legalmente apenas quando o fim é trabalho. É a lógica da “enganação”. Se ninguém está vendo, por que ser honesto? Pelo exposto, penso que, em momento de lazer, o correto seja pagar pela entrada e exercer normalmente seu direito de porte.
O pior de tudo é que essa cultura de diferenciação no âmbito da Classe Policial faz com que as demandas dos sindicatos sejam mesquinhas, principalmente dos cargos menos favorecidos na Carreira Policial (se é que se pode chamar de “carreira” o que existe nas polícias brasileiras). Assim, surge o que eu chamo de “Carteirada Institucionalizada”. Isto é, em prol da condição de Policial Federal, por exemplo, o Sindicato consegue benefícios, como desconto em concessionária de veículos, desconto em escola de línguas, desconto em áreas de lazer, ponto eletrônico facultativo (que ainda não vi beneficiar quem trabalha), melhor plano de saúde, dentre outros.
Pensando economicamente seria viável para as empresas celebrar esse acordo com entidades que lhes ofereçam maior demanda, e pode haver mais demanda se o público alvo for vendedores varejistas, e não, por exemplo, Policiais Federais. Embora haja outras variáveis, como renda, não me convenço de que os acordos não sejam pelo status. Assim, um vendedor varejista, que tem menor renda, não tem esses descontos. Percebe-se, portanto, que as tentativas de diferenciações só beneficiam os que menos precisam.
O prejudicial é que as grandes causas da luta sindical ficam em segundo plano. E isso é ótimo para quem não quer ver o avanço dos Agentes de Polícia Federal, por exemplo. O que vejo como principais medidas são: tratar uma representação que se reduz a uma cópia literal de um Relatório Investigativo como plágio; buscar a autonomia de setores chefiados por Agentes e Escrivães para poderem enviar Ofícios para outros órgãos, afinal, a maioria já é feita por eles, porém sem sua assinatura; pedir autonomia pelo menos na fase investigativa de IPLs que provoquem Operações Policiais, comunicando-se formalmente com o MP mesmo sem derrubar a figura do Inquérito Policial;  promover capacitação de liderança e produção de Relatórios de Análises para EPA’s (seja da Inteligência Policial, do Núcleo Operacional, do Setor de Análise ou da Polícia Administrativa), porque muitos clamam por Carreira Única, mas não sabem colocar no papel de forma elaborada e completa o que investigam.
Ou seja, apresentar-se à sociedade como Agente Público de credibilidade e galgar passos no Judiciário para mudar, em pontos específicos, a estrutura vigente, pois o MP e o Judiciário são quem mais conhecem a estrutura da Polícia Judiciária no Brasil. Ao invés disso, busca-se no Judiciário benefícios financeiros, e espera-se por Lobbys no Congresso Nacional para uma alteração legislativa que mude tudo no que se refere à autonomia e crescimento profissional. Entretanto, estas vontades necessitam de trabalho, de dever, de aperfeiçoamento, e é isso que às vezes é decepcionante: a luta de aumentar os direitos sem elevar as responsabilidades, por exemplo, assumindo previamente patamares de maior visibilidade.
Talvez não tenha ficado claro, mas o principal objetivo do texto foi mostrar que a “causa” deve se isentar de “esmolas”, de diferenciações. A luta principal deve ser a autonomia, a remuneração extra pelo resultado no trabalho por meio de promoções e o salário equiparado a outras classes profissionais. Afinal, todos têm sua função social, todos demandam esforço e habilidades específicas, seja um gari ou um deputado. Quando chegarmos nesse nível, as profissões vão atrair pessoas pelo que elas gostam, e não porque o pai obrigou a fazer Medicina ou Direito, nem porque ganha “bem” e é estável.
Quanto à “carteirada”, para finalizar, se no Brasil houvesse uma cultura de heroísmo policial, na qual tivesse um ajuste entre sociedade e polícia, e a entrada gratuita fosse tratada como atitude nobre, como ocorre em países desenvolvidos, eu me calaria. Mas no Brasil não, no Brasil é “feio”. As pessoas criticam essa atitude, elas não lhe conferem o mesmo respeito ao policial que não aceita a “carteirada”. O caminho é, primeiramente, conquistar a sociedade, e depois usufruir do reconhecimento. É muito chão pela frente!


20 de fevereiro de 2017

O FAROESTE BRASILEIRO


Conflito Agrário e Pistolagem

Profissionais engajados na promoção da justiça no interior do Pará se deparam com muitos percalços. A distância da família, dos grandes centros urbanos do país, e da cultura da cidade natal não são um sofrimento maior que a frustação de não conseguir realizar mudanças significativas em uma região abandonada pelo Poder Público.
O Conflito Agrário e a Pistolagem são dois dos maiores problemas que assolam a região. Além da articulação com classes dominantes e influência em órgãos públicos, os coronéis contam também com uma grande lacuna na lei e com um poder de fogo difícil de ser inibido devido à vegetação e dificuldade de acesso às áreas.
Primeiramente, os grileiros e fazendeiros acreditam veementemente que ilegalidades por ventura cometidas por eles são apenas de responsabilidade do Governo Federal, que não cumpriu as promessas oferecidas no povoamento dessas terras longínquas. De fato, as atividades ilegais se desenvolveram à medida que pessoas do Sul e Sudeste chegaram e não viram a estrutura prometida para realizar a pecuária, extração, minério, dentre outras.
Numa tentativa de conserto, diversas concessões de alienação de terras públicas, os chamados CATP’s, foram suspensos de forma não planejada e as áreas foram redistribuídas para pessoas desalojadas, sem moradia. Tal fato gerou, por exemplo, os assentamentos do INCRA, que ameaça a propriedade daqueles que ocuparam a região outrora.
Simploriamente, isso provocou o Conflito Agrário em diversas regiões do Estado do Pará. Percebe-se que a atuação policial torna-se difícil nesses casos, pois se tratam de conflito possessório, no âmbito cível, limitando ações criminais. Quando se chega no âmbito policial, geralmente se refere a cumprimento de mandados judiciais para reintegração de posse. Infelizmente, convenci-me que isso apenas será resolvido com iniciativa de órgãos públicos, como o INCRA, e trâmites judiciais, uma vez que a aplicação do Art.20 da Lei 4.947, que trata da Reforma Agrária e Invasão de Terras, torna-se inaplicável, embora seja uma brecha legal que permita a atuação policial em impasses cíveis.
Contudo, a crença de que as terras pertencem a eles unida ao domínio do poder econômico da região faz com que fazendeiros se vejam no direito de zelar pelas terras que, muitas vezes, são Terras Públicas Federais que foram objetos de grilagem. Isto é, a ação de estender sua área à alheia e falsificar documentos públicos para ocultar o ato ilegal. E, para defenderem sua “propriedade”, armam pessoas e as colocam de vigília na entrada ou sede das fazendas: os chamados Pistoleiros.
Os Pistoleiros consistem em grupos de pessoas armadas que fazem a segurança dos fazendeiros, protegem as terras que eles dominam, e resguardam os seus interesses, como em ameaças de despejos a colonos que têm barracos em áreas adjacentes. Nota-se também uma banalização da vida, visto que eles matam pessoas deliberadamente.
Neste contexto, vislumbra-se a atuação policial, uma vez que, agora sim, os embates incorrem em crime. Porém, o que se vê são deslizes de atribuição dos órgãos públicos federais, isentando-se de sua parcela de responsabilidade diante das tensões existentes. No que diz respeito aos órgãos públicos locais, são bastante inatuantes, quando não praticam corrupção.
Por exemplo, a Polícia Federal é o órgão que regula as atividades de Segurança Privada, como transporte de valores, plano de segurança bancário, e exercício de vigilantes. Logo, a pistolagem fere as atribuições reguladoras dessa instituição, já que consiste, formalmente, em Segurança Privada Clandestina. Além disso, o fato de essas atividades serem realizadas muitas vezes em terras públicas federais envolve bens da União, tutelados pela Polícia Judiciária da União. Há também o fato de essas pessoas atuarem em grupos, o que pode ser enquadrado na Lei 12.850, de Organização Criminosa; e serem famosas pelo modus operandi, atentando contra os direitos humanos com repercussão interestadual.
Não obstante, depara-se muito com argumentos de que flagrantes desses tipos só podem ser tipificados em ameaça ou vários portes ilegais de arma de fogo, transferindo a responsabilidade de atuação para órgãos locais. Enfim, a miopia de não encarar os acontecimentos diários como fenômenos sociais amplos, ou fragmentos de uma articulação maior, ainda é um mal que caberá à História reduzir em nosso povo. Enquanto isso, as mudanças imediatas são possíveis com apenas uma virtude: Vontade.
Assim, entende-se que o grande diferenciador que supre as lacunas das leis é a vontade das pessoas que vão para essas regiões exercerem prerrogativas em órgãos de controle, fiscalização, policial e judicial. Afinal, os representantes do governo são objetivamente a “presença do Estado” que tanto é cobrada como propulsora da transformação nessas regiões.
Lamentavelmente, o que muito se vê são pessoas de ‘passagem’, sem se preocupar em promover mudança; ou amedrontadas pela falta de aparato e possibilidade de perseguições, o que permite a continuidade do sistema de poderio estabelecido. Enquanto a vontade de trabalhar não se sobrepor aos poucos recursos que se tem, nada acontecerá. E voltaremos para nossas casas sem ser lembrados. Esse é meu único medo!


Este texto é em homenagem aos colegas de Altamira/PA, que padecem dessas restrições de atuação mesmo com todo o gás impetrado na promoção da justiça, em especial Renato Zavarez e Augusto Gabriel.

6 de janeiro de 2017

APROVAÇÃO ÀS MATANÇAS EM PRESÍDIOS



Em meio à multidão que atualmente palpita sobre os acontecimentos que repercutem, não pude deixar de expor uma ideia sobre a matança nos presídios. Porém, diferentemente da maioria, e principalmente de colegas policiais, permito-me a relatar com outro teor.
Infelizmente, não consigo encarar a carnificina como algo benéfico à sociedade ainda que uma quantidade considerável de bandidos esteja conhecendo o inferno nesse momento. Mas penso primeiramente o quão sanguinários estão os agentes do crime. E o Estado tem que tomar providência rápida, em âmbitos estruturantes e, inclusive, "culturais". Esse é o principal recado!
Não me assusto quando civis defendem “que eles se matem”, “espero que morram todos”, afinal, eles são leigos e não têm a responsabilidade direta de zelar pelo Estado. Mas quando a própria segurança pública apoia guerra civil, ela abre mão da força legal que ela mesma resguarda, como autoridade do Estado. É um tiro no pé; é fragilizar a polícia.
Engraçado que muitos que defendem os massacres acham Fascista quando se propõe a pena de morte, ou pena perpétua com trabalhos forçados, como uma alternativa de pena máxima no Brasil. Contudo, ao surgir barbárie exercida entre criminosos, acham positivo. É a mesma vertente: “justiça” sendo feita utilizando a morte como punição. Mas há duas diferenças. Uma é que a praticada pelos criminosos são monstruosas e divulgadas, além de objetivar a exposição de poder paramilitar, e não a promoção de justiça. Outra é que o agente ativo desta ação não tem legitimidade para tal.
            Um exemplo claro do erro despercebido é comparar esses assassinatos com a atuação do Estado no Carandiru. Nesta situação, busca-se criminalizar os policiais, que, dentro do cumprimento do dever legal, fizeram a limpeza; e na dos presídios de Manaus e Boa Vista, engradecem os criminosos, uma vez que, a meu ver, festejar essas mortes é aplaudir quem mata.
De forma estatística, essas matanças podem até reduzir o número de bandidos vivos, mas a força aplicada pelo lado sombrio marca mais uma vez a histórica fraqueza do Estado brasileiro em seu tempo democrático. E, novamente, temos a oportunidade de avançar em parte de nossa cura, mas somos ignorantes demais para perceber!  
            Logo, a alternativa não é legitimar o crime. Não é aumentar audiências de custódias para evitar o encarceramento. Nem culpar a terceirizada que administra o presídio, muito menos a condição social que os detentos foram submetidos. Isso tudo é muito pequeno diante do que foi mostrado à sociedade. Eles estão ascendendo, e vão quebrar o equilíbrio independente dessas medidas micro.
            Na ausência do Estado, que Deus nos proteja.